segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Ka'aari


      Muitas matas e florestas no império são densas mas relativamente tranquilas, lugares onde um aldeão pode caçar lebres por prazer e necessidade. Ka'aari, o santuário reservado para Corallin, é diferente. A superfície do solo é um emaranhado de troncos caídos, montes de folhas decompostas, trepadeiras urticantes tão vastas e enozadas que sustentam o peso de árvores. Abaixo disto, o solo é impenetrável devido à maneira como no espaço entre duas raízes parece haver uma terceira. A competividade natural da flora é amplificada pelo poder divino de Corallin a um ponto que se torna perceptível às pessoas.

    Olhe para cima, para baixo, para trás. Onde seus olhos pousarem, verá verde-oliva e castanho salpicado de todas as cores do mundo, exceto a luz do sol barrada pelo dossel verdejante. Mas nunca é escuro. Líquens saturam nossos olhos com laranja e rosa, cachos de cogumelos podem ser usados como candelabros que reluzem amarelos e violetas.

    Os odores são de mel, alho, peixe podre, madeira úmida e pólen seco, tudo fresco e amargo, doce e nauseante ao mesmo tempo. E quando você acha que já se acostumou, surge um cheiro novo para discordar. Em Ka'aari até os odores são selvagens e agressivos.

    E os sons, por Corallin Dona-da-Terra, os sons. Mesmo sem chuvas ou ventanias, árvores estalam com o próprio peso e copas farfalham como vizinhas fofoqueiras.

    Neste espetáculo, cuidado para não tropeçar nas nozes, imensas mas tão enrugadas que mal alimentam. Descanse nos amontoados de folhas que relaxam como um colchão de penas envoltas em seda, estenda a mão até a seiva doce derramada pelo flanco do tronco, tão farta e constante que consegue polir as pedras abaixo até virarem seixos, use um fruto para massagear o pescoço. Não tenha pressa, em Ka'aari cruzar um quilômetro pode levar um dia.

    Mas para o seu próprio bem, não traga ferro aqui. Corallin desaprova. Ela criou a ferrugem depois de ver como as pessoas abusaram de suas dádivas minerais, e alguns animais daqui são capazes de tornar uma espada imprestável. A deusa-mãe nos deu muito, mas não deixa de punir os nossos erros. Não faz falta, nós sabemos onde encontrar gramas tão rigídas e afiadas que só é seguro manusear a raiz. -Mera Lyn’Dis (feidralin), Grán Cacique do conclave dos Druidas Eternos, a maior autoridade em Ka’aari. As alegações de que comandava a frota que, recentemente, atacou a embarcação diplomática com destino para Technogestalt estão sendo investigadas.



      Além das maravilhas vegetais do santuário, há animais assombrosos. A maior defesa do santuário são os formigueiros nômades, cada inseto com cinquenta centímetros de comprimento mais quatro mandíbulas de vinte centímetros, uma tesoura dupla. São a resposta de Corallin a qualquer tentativa absurda de desmatar ou civilizar a natureza selvagem que ela reservou para si.

     Intangíveis, mas não menos importantes, Anhanguás são espíritos errantes que podem possuir um animal e torná-lo sanguinário e destemido. Possessões por longos períodos vão afetar o animal fisicamente, acentuando suas habilidades e armas naturais. Versões atrozes de animais comuns e, possivelmente, plantas carnívoras muitas vezes são resultados de espécimes possuídos por anhanguás que conseguiram se reproduzir. Não acho que estes espíritos queiram fazer mal, apenas criar uma simbiose com o seu hospedeiro. Após um período agressivo de adaptação, surgem feras tão magníficas quanto unicórnios e grifos. Talvez a deusa os tenha criado como uma forma de fortalecer a natureza contra os exageros da civilização, incluindo o império do norte.

  
    E fértil como só a natureza pode ser, Corallin possui mais servos celestiais do que todos os outros deuses do panteão combinados. A imensa maioria são os gigelorum, animais sobrenaturais com corpo físico, mas tão pequenos que são invisíveis. Espalhados por toda a terra e água existente no império, influenciam em cada plantação, poço e animal. Também existem fora do império, exceto nas Terras Inquietas, onde foram extintos pelos nefilims. Ka'aari é saturada com gigelorum. Mesmo a decomposição é acelerada, já vi cadáveres de megatérios sumindo após algumas horas. As tribos locais usam cavernas para seus templos porque nenhuma madeira morta dura muito. Eu ainda lembro de quando uma tripulação desceu à praia para capturar animais, mas quando voltaram o barco estava imprestável. Isso já faz mais de um século, e seus descendentes agora formam a tribo Pictupi. Eles se pintam de azul marinho por que ainda não aprenderam quais resinas impedem roupas de se desfazerem.. Acredito que os espíritos que chamamos de anhanguás são, na realidade, colônias de gigelorum atuando em conjunto.
-Itagi Abagna (shardokan), guardião da colméia profética.

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