quinta-feira, 5 de abril de 2018

Escravidão


     No Império do Norte, todas as pessoas são desiguais. Algumas têm mais direitos e deveres do que a maioria, devido aos privilégios de um título aristocrático. A maioria são homens livres, desde o aldeão passando frio  ao mercante comprando um navio novo. Uma grande parcela tem poucos direitos e muitos deveres: os escravos. Escravidão é mais do que uma corrente no pescoço. É o desdenho de quem passa, a sensação de saber exatamente o quanto você vale para outros, as restrições que segue por reflexo. Mas controlar o corpo é mais fácil do que controlar a mente, e ser um escravo é uma condição definida por castigos e toque de recolher. Para muitas pessoas, estar sozinho e estar na presença de um escravo é a mesma coisa. Mesmo assim, a familiaridade e possíveis segredos conhecidos podem fazer com que um dono tenha tanto medo e ódio de um escravo quanto este tem em relação ao primeiro. Não só indivíduos e famílias, mas instituições e organizações como templos, guildas, feudos e o império podem possuir escravos em seu nome. Entre os poucos direitos que escravos, estão incluídos: eles não podem apanhar em público; o assassinato de um escravo é considerado um crime de homicídio, e não destruição de propriedade; e todo escravo pode receber um salário mensal, acumular dinheiro e usá-lo para comprar a sua liberdade.

     Na média, escravos levam vidas difíceis, muitas vezes brutais e curtas. Mas como toda média, representa uma enorme variedade de situações. A disparidade no tratamento de um escravo por parte de seu dono é tamanha, que é comum um escravo com um dono relativamente bondoso se vangloriar disso a outros mais desafortunados. Como em qualquer classe social, existem muitas subdivisões. A condição de um escravo reflete a sua função. Um escravo veterinário do exército nortenho é muito mais importante, respeitável e caro do que um escravo público ordenado a limpar as ruas da cidade que o possui. Uma médica tem aposentos e status social muito além do que um cidadão ordinário, embora este último tenha um status legal maior. Lealdade e confiança também marcam uma diferença: o elfo recém-adulto pode conceder liberdade à ama-seca anã que cuidou dele quando pequeno. Outras funções importantes incluem tesoureiro, capataz, secretária, gladiador etc. No outro extremo, quem trabalha nas minas pode ter a sua vida contada em meses.

     O culto de Melúcia luta ativamente contra o mau-trato crônico no comércio e emprego de escravos, que consideram atitude contrária aos princípios de amor e prazer de sua deusa. Muitos templos não aceitam fiéis que possuam escravos, e petições para o fechar de  para mercados escravistas são comuns. Também patrocinam diversos aventureiros para coibir o tráfico ilegal, coletivamente conhecidos como "Amantes da Liberdade". Costumam abordar navios escravistas em alto-mar, e nem todos se limitam ao tráfico ilegal, libertando e ajudando escravos cuja posse é legítima aos olhos do império. A clériga de Melúcia, a condessa Eliseé Beminni, regularmente compra escravos através de terceiros para então libertá-los e equipá-los de forma a atacar escravistas fora do território nortenho. Seu alvo favorito costuma ser o Numantia Berriak, um mercado no do Rio de Fogo, de onde embarcam dezenas de milhares de escravos mundo afora todo ano. Há alguns anos, os chefes locais redigiram uma carta ao imperador Basileus, pedindo por intervenção, amizade e livre comércio. Foram ignorados.

     Ourgos também é popular entre os escravos, por representar trabalho duro, e por que muitos artesãos são ou foram escravos, e através dessa profissão adquiriram liberdade. Os escravos pertencentes ao culto de Ourgos costumam ser mais valorizados, já que o trabalho manual é uma forma de adorar o deus do trabalho. O outro deus importante aos escravos é Carnifícius. Na sua posição de justiceiro divino, é adorado por escravos que possam passar, ou tenham passado, por castigos injustos. Muitos dos servos do deus da morte, os maganchos, são eles próprios escravos, punindo donos e mestres que abusem das pessoas que lhes pertencem.

     Fugas de escravos são comuns em todo lugar, a toda hora. O problema é que isto facilita a existência de vampiros, que podem abduzir um escravo na segurança que aquele escravo é considerado um fugitivo. Mesmo centros urbanos podem abrigar covis vampíricos desta forma, e muitas regiões mantém censos tão meticulosos de escravos quanto pessoas livres por esta razão. Porém, existem rumores sobre o ducado de Chouette. Este é um dos ducados mais recentes, estabelecido nas margens nortes do rio de fogo há apenas 75 anos, pouco povoado e muito dependente de escravos em sua economia. O culto de Carnifícius é especialmente forte aqui, não só pelo enorme número de escravos, mas também por que são a principal força oposta aos vampiros infiltrados na nobreza e administração ducal, fraudando os censos escravistas para esconder seu consumo de mortais. Aqui, muitos maganchos se especializam em caçar vampiros, travando uma guerra oculta sob rebeliões de escravos e conflitos de classe.

     No final das contas, a escravidão imperial implica uma noção bizarra de igualdade. Qualquer um no império pode se tornar um escravo com os devidos azares, como dívida, sequestro, intriga política, exílio, crime, derrota em batalha, trapaça etc. E enquanto estudiosos no próprio império discutem os méritos e problemas da escravidão, deixam de notar um efeito cotidiano e significativo: de que qualquer um pode olhar à sua volta e ver alguém em uma situação tão ruim que se sente melhor em resposta. Isso é possível até à maioria dos escravos, e talvez o maior estímulo para agradar seus respectivos donos e ganhar a liberdade.


Esperança é o vício do desesperado.
-Pichação encontrada nos fundos do mercado de escravos da cidade de Raeti.

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